A decisão de intercambialidade automática de remédios biológicos não é do gestor público
O artigo intitulado “Boas práticas na compra pública de medicamentos biológicos” aclarou que o fato dos complexos medicamentos biológicos serem identificados pelo mesmo princípio ativo não significa que sejam produtos idênticos e com a mesma eficácia e segurança.
Apresentou, aos gestores públicos, boas práticas para a correta identificação técnica do medicamento em edital. Ao final, deixou um alerta de que a identificação técnica adequada, apesar de ser uma boa prática, não soluciona a situação de pacientes com tratamento em curso e, cuja eventual troca automática entre produtos biológicos, poderia colocar em risco a saúde dos pacientes e aumentar os custos do sistema público de saúde, pelo risco de efeitos adversos da troca.
Este artigo objetiva, justamente, apresentar aos gestores públicos as boas práticas de compra de biológicos para a situação de pacientes que já estão sendo tratados com um produto biológico. Noutras palavras, este artigo trata do tema da intercambialidade automática entre medicamentos biológicos que, quando não realizada de forma adequada, coloca em risco a saúde e a segurança dos pacientes.
Por intercambialidade entende-se a circunstância em que dois produtos farmacêuticos podem ser trocados um pelo outro, sem que essa troca gere risco significativo para a eficácia e a segurança do tratamento do paciente. Este conceito está previsto na Lei Federal nº 6.360/76 (Art. 3º, XXIII), que dispõe que o produto farmacêutico intercambiável é aquele que, quando comparado com o produto a ser trocado: i) contém o mesmo princípio ativo; ii) possui a mesma dose e forma farmacêutica; iii) é administrado pela mesma via; iv) possui a mesma posologia; v) tem a mesma indicação terapêutica; e, iv) apresenta eficácia e segurança equivalentes.
A lei definiu expressamente que um produto será intercambiável – apenas e tão somente – quando comprovada a equivalência de efeitos de eficácia e segurança em relação ao produto objeto da troca.
E o órgão regulador setorial – Anvisa – expressamente: 1) afastou a possibilidade do biológico ser qualificado como um medicamento similar ou genérico passível de troca automática (RDC Anvisa nº 16/2007 – item IV, 3; e, 17/2007 – item V, 1); e, 2) previu na Nota de Esclarecimento nº 003/2017/GPBIO/GGMED/Anvisa, que a troca automática de um produto biológico por outro é um ato exclusivo da relação clínica, ou seja, da relação entre médico e paciente. Isso para que ocorra o acompanhamento do paciente durante a troca e sua saúde não seja colocada em risco.
No contexto das normas vigentes cabe ao gestor público cumpri-las. O gestor público deve obediência às orientações gerais e às interpretações e especificações contidas nos atos públicos de caráter geral. Noutras palavras, os gestores públicos estão vinculados aos atos expedidos pelas autoridades públicas (uma lei federal, uma regulamentação ou uma orientação do órgão regulador) e devem obediência a tais atos, até ulterior revisão.
De tal sorte, cabe ao gestor público estabelecer os procedimentos e processos internos que garantam que a troca automática entre biológicos se realize sem risco à saúde do paciente.
Como forma de auxiliar o gestor público nesta temática, uma boa prática para o cumprimento dos normativos da intercambialidade automática de biológicos e, da preservação da saúde dos pacientes, está na realização de licitações, na modalidade pregão, processada pelo sistema de registro de preços previsto na Lei nº 8.666/93 (Art. 15, II), com atas de registro de preços simultâneas.
Com a simultaneidade de atas, o gestor público – de forma prática – deixa de lado a retórica e argumentos abstratos de risco de descumprimento da legislação de compras públicas e segue todas as normas vigentes sobre a troca automática entre biológicos.
Atas simultâneas de registros de preço, com preços distintos para o mesmo produto, já são uma prática aceita pelos órgão de controle como medida de cautela e segurança para garantir o fluxo permanente de abastecimento em instituições de funcionamento contínuo – como hospitais –, quando um fornecedor deixa de entregar ou atrasa o abastecimento; ou, quando o produto não atende as especificações do edital; ou, quando se testa novos ou diferentes produtos de melhor desempenho.
A solução para a temática da intercambialidade automática do medicamento biológico, no que diz respeito aos pacientes que já utilizam um medicamento biológico – comparador e cópia – é simples e está nas mãos do gestor público. Consiste no registro de atas simultâneas de preço para os casos em que há, no mercado, a comercialização de cópias de medicamentos biológicos, sem que se tenha os devidos estudos clínicos de comparabilidade e comprovação de mesma eficácia e segurança entre os semelhantes produtos.
Ao estabelecer a simultaneidade de atas o gestor público também permite a competitividade da compra. Isso porque garante a segurança da saúde dos pacientes que estejam com tratamento em curso e, ao mesmo tempo, abre a possibilidade para pacientes que ainda iniciarão um tratamento utilizarem outro produto eventualmente menos custoso para a administração.
Ainda, permitirá a comparação de adesão ao tratamento entre produtos e, se desejar, mediante procedimentos clínicos, protocolos médicos e processos internos claros e bem definidos, poderá iniciar a intercambialidade entre os produtos. Com isso, mitigará o risco de custos indiretos ao SUS em razão de eventuais efeitos adversos e de não aderência do paciente na troca automática entre produtos.
Tal sistemática e boa prática é solução, também, para as hipóteses em que o gestor público tem de executar uma compra emergencial, originária de ordem judicial extraída de prescrições médicas de biológicos para atendimento de determinados tratamentos, sendo vários deles já em curso.
Ou seja, essa boa prática eliminaria custos adicionais de transação com processos licitatórios emergenciais. Ainda, mitigaria eventuais riscos de descumprimento de ordem judicial e permitiria um melhor planejamento orçamentário na compra de medicamentos biológicos.
Adotando um conjunto de boas práticas – devida identificação e especificação técnica do medicamento biológico em edital e o registro de atas simultâneas de preços – o gestor público sai da abstração dos normativos de intercambialidade entre biológicos no Brasil e entra na realidade da preservação da saúde e da vida da população. Cumpre os normativos e age de forma legal e ética. Permite um melhor planejamento orçamentário e, ainda, auxilia no debate para a criação de uma adequada Política Nacional de Medicamentos Biológicos para o sistema público de saúde brasileiro.