Sem diagnóstico e tratamento precoces, crianças podem desenvolver deficiência intelectual grave e outras sequelas que podem levá-las à morte
Dois anos após a lei que regulamentou no SUS o teste do pezinho ampliado, que possibilita a detecção de 50 doenças no bebê, a nova triagem neonatal pouco avançou na rede pública.
A lei, sancionada sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 26 de maio de 2021, estabeleceu que os estados têm até cinco anos para expandir o teste do pezinho (triagem neonatal), em etapas.
Estados e municípios, especialmente das regiões Norte e Nordeste, contudo, ainda não conseguem oferecer para todos os bebês nem sequer a triagem anterior, de seis doenças, prevista no PNTN (Programa Nacional de Triagem Neonatal) desde 2012.
São elas: fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, doença falciforme e outras hemoglobinopatias, fibrose cística, hiperplasia adrenal congênita e deficiência de biotinidase.
Há demora na coleta de sangue do calcanhar do bebê, que deve ocorrer do 3° até o 5° dia após o nascimento, e no envio da amostra para os laboratórios.
Sem o diagnóstico precoce, terapias baratas e disponíveis no SUS demoram para ser iniciadas, e o bebê pode desenvolver sequelas, como deficiência intelectual.
No último mês, a Sbteim (Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros Inatos do Metabolismo) apresentou ao Ministério da Saúde um relatório em que mostra que há regiões, como o Amazonas, em que a porcentagem de nascidos vivos submetidos à triagem dessas seis doenças não chega a 60%.
A entidade pediu ao ministério a publicação dos indicadores da triagem neonatal por estado, para que a população possa acompanhar e cobrar seus gestores da saúde. A pasta informou que, a partir do panorama apresentado, busca soluções para reduzir essas desigualdades. O gargalo fica ainda maior considerando a oferta na rede privada do diagnóstico para as 50 doenças.
Segundo a endocrinologista Tânia Bachega, presidente da Sbteim, há vários estados em que a data da primeira consulta do bebê chega a 120 dias, mas, para doenças como hipotireoidismo congênito, que afeta 1 entre cada 2.500 a 3.500 bebês, pode ser tarde demais.
“É a causa mais frequente de deficiência intelectual grave e pode ser totalmente evitável. Se o bebê passa por triagem, faz [o exame confirmatório], passa por consulta e toma um remédio barato antes de 30 dias de vida, será uma criança normal”, afirma a médica.
Outra causa de deficiência intelectual grave, a fenilcetonúria, doença genética que afeta 1 em cada 10 mil bebês, também enfrenta gargalos na triagem, nas consultas e no tratamento. Em São Paulo, a triagem neonatal para a doença começou em 1976, na antiga Apae de São Paulo, agora Instituto Jô Clemente.
“A triagem neonatal no SUS não é só um exame. É um grande programa. Vai do diagnóstico ao tratamento e acompanhamento de doenças que podem ser graves e levar a deficiência intelectual, outras sequelas e óbitos. São doenças que a gente pode identificar precocemente e tratar”, diz Daniela Mendes, superintendente do Instituto Jô Clemente.
Para o geneticista e presidente do departamento científico em genética da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), Salmo Raskin, o grande problema para a ampliação é que não houve previsão de orçamento para a execução. “A lei foi promulgada com o prazo de até 180 dias para entrar em vigência, mas isso significa uma adaptação para a expansão. Um ano depois vimos que a execução não era possível por falta de orçamento”, diz.
Segundo ele, a dificuldade para expansão esbarra nos mesmos desafios para a realização do teste já com as doenças preconizadas. “E não adianta fazer apenas a triagem, é preciso depois entrar com o tratamento, que deve ser disponibilizado pelo SUS”, afirma.
Alguns dos novos diagnósticos que podem ser feitos com a expansão ainda aguardam a aprovação do tratamento na Conitec, que avalia a inclusão de novas tecnologias e medicamentos no SUS. Um deles é a atrofia muscular espinhal (AME), uma das doenças degenerativas que mais afetam a expectativa de vida infantil e cujo tratamento, considerado “o mais caro do mundo”, foi incluído recentemente no rol de tratamentos da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).
No caso da fenilcetonúria, os bebês precisam de fórmulas lácteas especiais. Nas regiões mais carentes, segundo Bachega, faltam processos contínuos de licitação para a compra dessas fórmulas nutricionais.
“É muito difícil pensar em expandir a triagem para as 50 doenças em lugares onde há ainda tantos problemas básicos para resolver. Não adianta ampliar e não ter tratamento, é preciso entrar com a medicação em tempo oportuno, geralmente antes de 30 dias de vida”, diz.
A turismóloga e presidente da Donem (Associação de Doenças Neuromusculares de Pernambuco), Suhellen Oliveira, 40, conhece bem essa realidade. Ela é mãe de dois filhos com AME, Lorenzo, 10, e Levi, 3, e o caçula teve o diagnóstico ainda no 5° mês de gestação, por meio do exame de amniocentese.
Oliveira se inscreveu para um estudo clínico em São Paulo e iniciou o tratamento do filho precocemente. Levi ainda necessita de atenção, mas tem a fala e os movimentos mais desenvolvidos do que o irmão mais velho, cujo diagnóstico aos seis meses de idade deixou sequelas mais profundas.
“Os médicos me diziam para ir para casa e me despedir dele, que ele morreria com um ano de idade. Felizmente, ele agora está para completar 11 anos, mas se tivesse descoberto antes ele teria um impacto bem menor da doença”, relata.
No planejamento de expansão, o diagnóstico da AME só seria incluído na quinta e última etapa de ampliação. É para abreviar a inclusão e ampliar a oferta de tratamento que luta o Universo Coletivo AME, que reúne, além da Donem, outras quatro associações dirigidas por mães de crianças com a condição. Elas conseguiram, no último ano, alterar da quinta para a quarta etapa a inclusão do diagnóstico, mas essa demora pode afetar ainda milhares de crianças.
“Sempre falam que a demora é porque o que existe já está em falta, mas, se formos esperar resolver o que não foi resolvido em 20 anos, não vamos sair do lugar nunca”, diz Oliveira.
Maior serviço de triagem neonatal do país, com mais de 340 mil bebês triados por ano na rede pública e privada, o Instituto Jô Clemente também participa das discussões sobre a ampliação de forma escalonada da triagem no país.
“A gente precisa de uma equipe multi e interdisciplinar muito bem preparada para o acompanhamento, precisa ter toda essa estrutura antes do avanço”, diz Daniela Mendes.
A cidade de São Paulo, segundo ela, é um exemplo de município que expandiu a triagem para 50 doenças nas maternidades públicas. “Temos muitos casos que foram diagnosticados precocemente e que foi possível iniciar o tratamento imediatamente, e a criança não evoluiu com nenhuma sequela.”
Segundo Mendes, é preciso que Ministério da Saúde, estados e municípios se articulem para cumprir e monitorar a execução do programa de triagem neonatal com qualidade e no prazo adequado.
Ela lembra casos como os de hiperplasia adrenal congênita, que se não for identificada rapidamente pode ser fatal. “A criança vai perdendo sal. Se em 15 dias você não identificar, não localizar essa criança e colocá-la num centro de referência, ela pode vir a óbito.”
“A iniciativa de alguns estados que ampliaram está correta, mas não era o que esperávamos. A nossa expectativa, como médicos, como sociedade, era de ampliação a nível nacional, com um planejamento, uma estratégia traçada. E não ocorreu até agora. Esperamos que, com o novo governo, isso esteja dentro do plano de ação da comissão de doenças raras do Ministério da Saúde”, afirma Raskin, da SBP.
Em São Paulo, a partir de uma parceria do instituto como a Secretaria Municipal da Saúde, foram criados protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas. Também foram treinados mais de mil profissionais, entre médicos, enfermeiros e nutricionistas, com garantia de acesso a medicamentos e tratamentos, segundo Mendes.
“Quando o gestor encara o programa como benefício para a população, quando a rede de assistência entende a importância da triagem, os tempos vitais, ele acontece.”