Reforma tributária e planos de saúde: pontos críticos

Incidência de CBS e IBS sobre receitas financeiras oriundas de reservas técnicas seria inconstitucional

Ao longo da tramitação da PEC 45 houve discussões sobre o que seria mais adequado para os planos de saúde, submetê-los ao regramento geral da CBS e do IBS, notadamente base de cálculo correspondendo ao somatório das operações tributáveis, com pouquíssimas deduções, e não cumulatividade, ou mantê-los em regime específico, análogo ao atual de PIS/Cofins, qual seja, regime cumulativo, com autorização para abatimento das corresponsabilidades cedidas, provisões técnicas e despesas assistenciais.

Já nas versões finais da PEC 45, previu-se que os planos de saúde estariam sujeitos a regime específico, semelhantemente ao que se passou com instituições financeiras em sentido amplo, o que terminou restando confirmado na Emenda Constitucional 132, de 20 de dezembro de 2023.

No PLP 68/2024, que tem por objetivo dar início à instituição da reforma tributária objeto da EC 132, é previsto regime específico que contém disposições acerca do regramento geral da CBS e do IBS, sobretudo as concernentes à não cumulatividade, que guarda semelhança com o regime de PIS/Cofins a que atualmente se submetem as operadoras de planos de saúde.

Grosso modo, é previsto um regime específico de CBS e IBS para as atividades típicas das operadoras de planos de saúde. A base de cálculo deverá ser apurada mediante o confronto das receitas dos serviços, compreendendo os prêmios e contraprestações, e das receitas financeiras oriundas das reservas técnicas com as indenizações correspondentes a eventos ocorridos (despesas assistenciais) e as comissões pagas a corretores pela distribuição de planos de saúde.

As alíquotas corresponderão a 40% das alíquotas de referência da CBS e do IBS, mandamento análogo ao tratamento diferenciado previsto pela EC 132 para os serviços de saúde.

Atos ou negócios outros não englobados no regime específico estarão sujeitos ao regramento geral da CBS e do IBS, com destaque para a impossibilidade de maiores deduções da base de cálculo, a autorização para compensação com créditos relativos a aquisições que não se caracterizem como despesas assistenciais ou a comissões devidas a corretores e a incidência das alíquotas modais daqueles tributos.

Em que pese a aparente normalidade das previsões voltadas a planos de saúde, alguns pontos nos chamaram a atenção, por conta do risco de elevarem ainda mais os seus custos, especialmente quando contratados por contribuintes da CBS e do IBS.

Questões de CBS e IBS referentes a planos de saúde: ótica do contratante

O primeiro ponto crítico que gostaríamos de comentar refere-se à previsão do artigo 221 do PLP 68 de que a CBS e o IBS incidentes sobre o “fornecimento” de planos de saúde não poderão ser creditados pelos contribuintes que os adquiram.

Segundo a exposição de motivos do PLP 68, a vedação se fundamenta no fato de que os beneficiários dos planos de saúde são pessoas físicas. Quer nos parecer que a impossibilidade de creditamento deu-se com vistas a que o plano de saúde tenha o mesmo impacto, seja quando contratado por pessoa jurídica, ou diretamente pela pessoa física beneficiária, evitando que a primeira situação termine sendo menos onerosa do que a segunda.

O argumento é até sedutor, mas não se sustenta. É verdade que a contratação de plano de saúde por uma empresa em benefício dos seus colaboradores e a contratação promovida diretamente pela pessoa física têm motivação comum, qual seja, garantir o acesso a assistência à saúde. Sucede, contudo, que os contextos dum e doutro caso são absolutamente distintos.

A empresa faz a contratação objetivando que os seus colaboradores tenham bom desempenho em suas atividades, quando não por obrigação determinada em convenções ou acordos coletivos ou até mesmo em lei, ao passo que a pessoa física o faz para ter segurança de acesso a serviço de saúde disponível e de qualidade.

Nem a Receita Federal foi tão longe interpretando a legislação de PIS/Cofins que versa sobre não cumulatividade. Ainda que de forma bastante limitada, a Receita Federal manifestou-se pela possibilidade de creditamento no caso de plano de saúde ofertado aos colaboradores que atuam na atividade de produção de bens ou prestação de serviços, e conquanto isto seja imposto por lei em sentido estrito (vide Parecer Normativo 05/2018 e Solução de Consulta Cosit 154/2023).

É no mínimo curioso um projeto de lei que tem dentre seus objetivos tornar a não cumulatividade ampla contemplar uma previsão mais restritiva do que a tão criticada legislação de PIS/Cofins.

Não bastasse o impedimento à tomada de crédito, a redação do artigo 5º, I, itens “a” a “c”, dá margem a se entender que serão exigidos CBS e IBS sobre a oferta de plano de saúde ao próprio contribuinte, quando este for pessoa física (situação logicamente impossível de se concretizar, haja vista ninguém poder oferecer algo a si próprio), ou a sócios, acionistas, executivos e colaboradores.

A situação é absurda. Prevalecendo tal interpretação, o contribuinte que contratar plano de saúde não poderá tomar crédito da CBS e do IBS recolhidos pela operadora e ainda deverá apurar estes tributos sobre a oferta do plano às pessoas ora mencionadas. Ou seja, teremos cumulatividade da CBS e do IBS em tal situação, em completo desacordo com o espírito da reforma tributária.

Parece-nos que se tratou de equívoco na redação do PLP 68, em função do que consta da sua própria exposição de motivos. No caso de tributação de atos não onerosos, como o fornecimento de bens e serviços a colaboradores, segundo o documento em causa, esta previsão faz-se necessária, pois o contribuinte se creditaria destes bens e serviços.

Vejamos: “33. (…). Não poderia ser permitido o creditamento do IBS e da CBS para o contribuinte na aquisição de bens e serviços e, depois, o fornecimento desses bens ou serviços aos seus empregados e administradores sem a incidência do IBS e da CBS”.

Ora, no caso de contratação de planos de saúde, a tomada de crédito da CBS e do IBS é expressamente vedada pelo artigo 221 do PLP 68, não fazendo o mínimo sentido prever a tributação do oferecimento de tal benefício aos colaboradores do contribuinte.

Para piorar, se a previsão em questão se tornar letra de lei, o tratamento diferenciado de tributação para serviços de saúde restará indevidamente diminuído, cairá por terra, quando estes forem tomados por meio de plano de saúde contratado por pessoa jurídica, por conta da dupla tributação da despesa com aquele, a primeira pela operadora e a segunda pela empresa contratante.

Ao impor tratamento mais gravoso em função da forma de contratação do mesmo item, restará evidente a afronta à isonomia tributária. E o problema vai além disso. A violação ao princípio da igualdade não estaria limitada à esfera tributária, pois a Constituição Federal, em seu artigo 7º, IV, reconhece o acesso à assistência à saúde como necessidade vital básica e direito de todos, sem distinção.

Tributação das receitas financeiras oriundas das reservas técnicas

Um último ponto crítico do PL diz respeito à previsão expressa de tributação das receitas financeiras oriundas das reservas técnicas mantidas pelas operadoras de planos de saúde, por força de normas de cunho regulatório.

Cotejando os dispositivos constitucionais introduzidos pela EC 132, temos que as materialidades da CBS e do IBS estão circunscritas às operações ocorridas no âmbito de cadeias de consumo.

Diante disso, podemos depreender ao menos duas características do arquétipo constitucional daqueles tributos, tratando-se de incidência no âmbito doméstico: uma referente à materialidade possível daquelas exações, qual seja, a prática de operações, negócios jurídicos que resultem no fornecimento de bens e serviços; outra quanto à sujeição passiva, no sentido de que somente é contribuinte da CBS e do IBS aquele que tem como atividade típica o fornecimento de bens e serviços.

Entendemos que não é cabível utilizar o quanto decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do RE 609.096/RS – Tema 372 – para fundamentar a possibilidade de tributação das receitas financeiras das reservas técnicas, no sentido de que as receitas brutas operacionais decorrentes da atividade empresarial típica das instituições financeiras integram a base de cálculo PIS/Cofins.

Este argumento foi invocado recentemente pelo ministro Luiz Fux para revogar liminar concedida pela ministra Rosa Weber em 2021, com vistas a suspender os efeitos da decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), até o julgamento do assunto pelo STF, que havia autorizado a incidência dessas contribuições sobre as receitas financeiras das reservas técnicas das seguradoras.

Cabe mencionar que, na Reclamação Constitucional 65.301, o ministro Dias Toffoli consignou expressamente que o Tema 372 deve ser observado unicamente para fins de tributação de instituições financeiras pelo PIS/Cofins, não servindo como precedente para entidades de natureza distinta.

Ainda que se cogite, por absurdo, que a constituição de reserva técnica por seguradora ou operadora de plano de saúde constitui atividade típica, para fins de caracterização do fato gerador CBS e IBS, não basta a atividade ser típica, esta deve compreender o fornecimento de bem ou serviço, o que não se passa em tal situação. A receita financeira é fruto de remuneração dos recursos financeiros relativos a reservas técnicas, não de fornecimento do que quer que seja.

Exceção feita à desastrosa regulação a respeito de operações não onerosas, andou bem o PLP 68 nos dois aspectos que comentamos acima, ao prever em seu artigo 4º, § 1º, que a CBS e o IBS incidem sobre operações onerosas que constituam fornecimento de bens ou de serviços, e em seu artigo 21, I, que é contribuinte desses tributos o fornecedor que realizar operações:

  1. no desenvolvimento de atividade econômica;
  2. de modo habitual ou em volume que caracterize atividade econômica; ou
  3. de forma profissional, ainda que a profissão não seja regulamentada.

A receita financeira das reservas técnicas de uma operadora de plano de saúde, como indicamos anteriormente, não é oriunda de fornecimento de coisa alguma, mas em razão do emprego dos recursos financeiros relativos a tais reservas, como, por exemplo, numa aplicação financeira.

Ademais, não constitui atividade típica das operadoras manter reservas técnicas. Isto se dá em razão de normas de cunho regulatório, com vistas a resguardar o sistema de saúde suplementar. A atividade típica das operadoras é a oferta (fornecimento) de planos de saúde e, quando muito, a prestação de serviços de assistência à saúde.

Diante disso, entendemos que, caso reste instituída, seria inconstitucional a exigência de CBS e IBS sobre as receitas financeiras percebidas pelas operadoras de planos de saúde, oriundas de suas reservas técnicas. Sem falar que previsão nesse sentido contraria as definições do fato gerador e dos contribuintes da CBS e do IBS previstas no próprio PLP 68.

Fonte: Jota

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